Ele trocava
de roupa com irmãos para não ir igual todos os dias à faculdade.
Spanholo
também já costurou e lavou carros; hoje ele é colega de miss DF.
O
recém-empossado juiz federal Rolando Valcir Spanholo, de 38 anos, afirma que
disciplina e motivação foram a receita que o levaram a romper com a antiga
realidade de borracheiro e alcançar o sonho de ser magistrado em Brasília. Os
últimos quatro anos foram dedicados a concursos públicos, nos quais ele
acumulou 200 quilos de resumos de disciplinas de direito. O advogado é de
Sananduva, no Rio Grande do Sul, e foi aprovado na mesma seleção feita pela
miss DF Alessandra Baldini.
Spanholo
conta que a ideia de virar juiz veio tarde, já no final da faculdade e por
influência de um professor. Até então o objetivo dele era apenas “melhorar de
vida”. A graduação, de acordo com o juiz, já parecia uma grande superação para
ele e os quatro irmãos, que trocavam de roupa e sapatos entre si para não irem
todos os dias vestidos do mesmo jeito para a instituição.
O trabalho
começou cedo. Entre os 9 anos e os 15 anos, os cinco consertavam pneus e
lavavam carros junto com o pai. “Durante o inverno, as mãos e os pés ficavam
quase sempre congelados. Não tínhamos luvas de borracha e outros equipamentos
de proteção que hoje são comuns e obrigatórios. Só restava fazer muito fogo
para se aquecer, mas, com isso, os choques térmicos eram inevitáveis. Vivíamos
com fissuras nas mãos e pés."
O magistrado
diz que a condição levava a família a ser muito severa em relação à educação e
a acreditar que só assim todos teriam melhores oportunidades. O esforçou
coletivo ajudou os cinco irmãos a ingressarem em uma faculdade de direito que
ficava a 250 quilômetros de casa. Para pagar os estudos, os irmãos tiveram de
aprender a costurar cortinas e edredons e a fazer bordados.
“Depois, com
a chegada da habilitação para dirigir, também passei a trabalhar na área de
vendas. Era um desafio diário. Saía sempre cedinho, rodava o dia todo, batendo
de porta em porta pelos municípios da região, oferecendo nossos produtos
diretamente nas casas. Por razões de economia, meu almoço era sempre debaixo da
sombra de uma árvore, dentro do carro. Cardápio? Algumas fatias de pão caseiro
e um pedaço de frango empanado – e frio – ou uma torrada carinhosamente
preparados pela minha mãe. Bebida? Água que levava dentro de um litro [de
garrafa] pet”, lembra.
Spanholo
voltava para casa no final da tarde para pegar o ônibus para ir à faculdade.
Muitas vezes, por causa da distância, não conseguia tomar banho antes das
aulas. As faltas também eram frequentes por causa do trabalho e aconteciam em
média duas vezes por semana. Como consequência, ele ficou de exame nos dez
semestres do curso.
"Na
verdade só consegui levar adiante a graduação porque meus colegas conheciam
minha realidade e sempre me emprestavam os cadernos para copiar ou tirar xerox
das suas anotações. Confesso que, durante a graduação, estudei muito pouco por
livros de doutrina, não tinha como”, explica. “Aliás, meu 'horário de estudos'
era no ônibus, durante as viagens de ida e volta, e aos domingos – os sábados
eu usava para fazer vendas nas cidades mais distantes. A necessidade faz a
gente se reinventar."
Sem
familiares e conhecidos na área, Spanholo afirma que só fez a seleção para a
Escola Superior da Magistratura, aos 22 anos, por insistência de um professor.
A instituição fica em Porto Alegre e oferece cursos de preparação e de
aperfeiçoamento para interessados na área. A aprovação foi uma surpresa, e o
jovem precisou se desdobrar entre trabalhar em escritórios aos finais de semana
enquanto passava de segunda a sexta estudando a 400 quilômetros de casa.
Ao fim do
curso e já casado, o juiz deu início à primeira das duas "temporadas"
de concursos públicos. Ele conta que chegou perto da aprovação para promotor,
procurador, juiz do trabalho e juiz estadual entre 1999 e 2003, mas precisou
desistir dos certames porque a mulher havia acabado de ganhar bebê.
"Tínhamos
o filho pequeno, e, em uma decisão muito difícil, conjuntamente optamos por
‘adiar’ meu sonho de ser magistrado. Em 2010, decidi retomar tal sonho, mas
agora na área federal. Sofri muito para refazer a base do conhecimento que
perdi durante aquela ‘parada técnica’. Levei um bom tempo para voltar a atingir
um ‘nível competitivo’. Reprovei em muitos concursos. Aliás, de tanto ficar no
‘quase’, acabei ficando ‘especialista’ em calcular e antecipar as notas de
cortes das provas objetivas dos nossos concursos”, brinca Spanholo.
Foram
dezenas de seleções desde então. Para se preparar, o magistrado passou a
estudar a vida de pessoas que já haviam alcançado aprovação no concurso que ele
queria. Ele lembra que identificou o que havia de comum, em relação a
estratégias e métodos de estudos, para traçar o plano de como se prepararia.
“Logo
percebi que, por conta das minhas limitações – tempo, lugar, idade —, muitas
delas eu não conseguiria executar, como frequentar cursos preparatórios,
estudar por ‘doutrina pesada’ etc. Sentia que precisava ariscar estratégias
próprias, moldadas na minha realidade. Experimentei várias. Umas deram certo,
outras nem tanto”, diz.
Spanholo
afirma que surgiu então a ideia de começar a fazer resumos das matérias e de
grifar as principais leis para voltar a ter uma noção das principais áreas do
direito. Depois, passou a estudar com base em provas antigas. Ele também fez
sinopses de informativos dos tribunais superiores e usou a internet para pesquisas.
Ao final, juntou mais de 200 quilos – em 34 caixas – de material de estudo. O
acervo foi encaminhado para reciclagem.
Para
suportar a pressão e o esgotamento emocional, o juiz conta que também via
vídeos motivacionais em redes sociais. Ele lembra que a preparação o ajudou a
manter a tranquilidade no dia da prova oral, depois de passar quase seis horas
trancado em uma sala de confinamento para ser testado por cinco pessoas sobre
conhecimentos em todos os ramos do direito.
“Naquele
momento um filme da vida passa na cabeça da gente. Sem me abalar, em fração de
segundos, lembrei-me de cada fase, dos meus pais e familiares, das privações,
das quedas, enfim, de tudo que tinha se passado ao longo dos 38 anos de minha
existência”, conta. “Entrei naquele recinto pronto para ‘lutar’ por mim e por
todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, acabaram me ajudando a chegar
naquele lugar. Não podia decepcioná-los.”
O resultado
do certame para o Tribunal Regional Federal saiu em novembro de 2014, e
Spanholo ficou entre os 60 primeiros classificados. Surpreso com a boa
colocação, ele se diz orgulhoso da trajetória e atribui o resultado ao esforço
e ajuda dos familiares e amigos.
“A vida
sempre me ensinou que dificuldades existem para serem superadas. Aliás,
dificuldades todos têm. Uns mais, outros menos, mas todos enfrentam obstáculos
para alcançar seus sonhos. O que diferencia as pessoas é exatamente a forma
como elas reagem diante das resistências do cotidiano. Uns se acovardam e se deixam
dominar. Outros veem nas dificuldades grandes oportunidades de crescimento, de
evolução pessoal”, afirma.
“No meu
caso, desde criança, sempre precisei acreditar naquilo que para os outros seria
motivo de dúvida. Nada nunca chegou fácil. Por necessidade, treinei minha mente
para acreditar que com humildade, disciplina e motivação era possível vencer um
a um os desafios da vida, mesmo não dispondo das melhores condições para
enfrentá-los. Sempre fui à luta. Nunca esperei que os outros viessem me dizer o
que eu poderia e o que eu não poderia ser. Definia meus objetivos e passava a
identificar o que precisava ser feito para atingi-los”, completou o juiz.
Dizendo-se
avesso a publicizar a própria história, Spanholo conta que tem se espantado com
a quantidade de pessoas que diariamente o procuram para falar que ele as
inspirou. Segundo o magistrado, os relatos extrapolam o mundo dos concursos
públicos e têm relação até mesmo com a vida privada de algumas delas.
“Não sei
explicar direito, mas é como se as pessoas precisassem ver diante dos seus
próprios olhos uma prova de que também elas podem superar seus limites pessoais
e alcançar os seus sonhos”, declara. “Procuro sempre mostrar para elas que, de
fato, se um ex-borracheiro e ex-lavador de carros conseguiu, é porque qualquer
outro também poderá ser juiz federal ou que quiser ser na vida. Basta ter
disciplina, persistência, espírito de superação e, principalmente, acreditar no
nosso próprio potencial.”
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