O dia de
hoje é uma data proibida na China. Em 4 de junho de 1989, ocorreu o massacre da
Praça da Paz Celestial, a repressão a tiros de milhares de estudantes que
estavam concentrados na principal praça de Pequim em busca de reformas
democráticas. A foto célebre do estudante desafiando os tanques (à esquerda)
entrou para a história. Se você puser a data de 4 de junho em algum site da
internet chinesa, será bloqueado e provavelmente investigado pelas autoridades.
Para burlar os controles digitais, alguns chineses referem-se ao dia como 35 de
maio.
Vinte e seis
anos depois do massacre, a esperança de reformas democráticas está mais
distante do que nunca. Em vez da abertura promovida nos países da Cortina de
Ferro a partir da perestroika de Mikhail Gorbachev, a China tornou-se um regime
ainda mais duro politicamente. Desde que o atual presidente Xi Jinping assumiu
o poder, em 2013, a ditadura chinesa se revestiu de ainda mais autoritarismo.
Xi tenta comparar sua visão econômica ao reformismo de Deng Xiaoping – que, com
a adoção de princípios capitalistas, culminou por fazer da China a maior
economia do mundo este ano, segundo algumas estimativas. Mas sua real
inspiração política é Mao Zedong. Desde Mao, a China não vive um culto à
personalidade semelhante. As consequências da liderança de Xi para o mundo
ainda são nebulosas. Para a China, porém, elas já estão claras.
Com seu
jeito afável e simples, Xi age como um político astuto. Pega bebês no colo,
anda de microônibus em vez de limousine, ensaia chutes de futebol e segura o
próprio guarda-chuva. Esse tipo de atitude, em tempos de Pepe Mujica e papa
Francisco, faz dele um líder extremamente querido na população, conhecido pelo
apelido Xi Dada (Tio Xi). Algumas pesquisas estimam sua popularidade em índices
de dar inveja à presidente Dilma Rousseff de tempos bem anteriores a quando ela
o recebeu no Palácio do Planalto este ano (foto). Mas não se engane. Xi é um
filho da elite. Seu pai, Xi Zhongxun, era um dos revolucionários mais próximos
de Mao e chegou a vice-primeiro-ministro. Foi banido durante o período da
Revolução Cultural, partiu para uma espécie de exílio interno e só conseguiu
fazer valer algumas de suas ideias pró-capitalistas quando Deng começou a
implantar suas reformas. Mesmo assim, jamais voltou a ter um espaço maior no
Partido Comunista. Seu filho teve de esconder sua origem na “aristocracia
comunista” para galgar os degraus até chegar ao topo do partido. Seus
antecessores, Wen Jiabao, Hu Jintao e Jiang Zemin, tinham todos origens mais
modestas. Eram tempos em que aparecer demais pegava mal para um líder chinês.
Todos tinham de ser discretos, em nome do bem coletivo. Com Xi, isso acabou.
Uma vez no
poder, ele se cercou no Comitê Executivo Politburo de nomes de confiança, quase
todos com seu perfil: um pedrigree vermelho vivo, que remonta aos tempos de
Mao. São conhecidos pela alcunha de “príncipes comunistas” e se opõem à
liderança anterior com um discurso de combate determinado aos corruptos que
usavam seus privilégios no partido para levar vidas de nababos. Desde que
assumiu, Xi perseguiu mais de 100 mil nomes no partido, sob diferentes
acusações de corrupção. Os mais relevantes foram Bo Xilai – ex-chefe do partido
na província de Chongqing, condenado à prisão perpétua por corrupção e abuso de
poder – e Zhou Yongkang – ex-integrante da cúpula do Politburo e ex-responsável
pela segurança interna, praticamente aposentado à força e depois investigado
por corrupção. Com a neutralização dessas duas lideranças, Xi conseguiu abrir
espaço para seu controle absoluto sobre o partido e o aparato repressor.
Em um longo
perfil de Xi que publicou há algumas semanas na New Yorker, o jornalista Evan
Osnos, ex-correspondente da revista em Pequim, revela que nos últimos meses ele
endureceu o controle das autoridades sobre a internet e sobre as vozes
dissidentes. O temor de estudiosos ouvidos por Osnos é que, em vez de uma
abertura gradual, a China depois de Xi corre o risco de uma explosão
incontrolável, uma outra revollução.
O maior
desafio de Xi é a economia. Depois de mais de 30 anos como o país de maior
crescimento no planeta, superior a 10%, a velocidade da China caiu, para em
torno de 7%. Para manter o país atraente para o capital estrangeiro, Xi fez
várias reformas no mercado financeiro e finalmente conseguiu fazer da Bolsa de
Shenzhen um ator global de relevo. Com US$ 4,3 trilhões de reservas, a maior
parte em títulos do governo americano, a China provavelmente continuará, nos
próximos anos, a manter sua relação simbiótica com os Estados Unidos – os
americanos compram produtos chineses; e os chineses se encarregam de financiar
a dívida do governo americano.
Mas isso só
funcionará se a economia chinesa continuar competitiva. E os sinais nesse campo
são inequivocamente negativos. Embora seja o maior centro industrial do
planeta, a China não consegue obter ganhos de produtividade com inovação. O
clima de controle que vigora nas universidades e órgãos públicos não contribui
para melhorar isso. A força de trabalho está envelhecendo, ficando mais educada
e mais cara. Nunca houve tantas greves quanto em tempos recentes. Com as
reformas financeiras, a elevada poupança chinesa começa a migrar para fora do
país. Osnos cita um prêmio, concedido recentemente a pesquisadores em ciências
sociais, em que sete dos dez projetos vencedores se dedicavam a analisar os
discursos de Xi ou seu slogan: o “sonho chinês”. Ninguém na China parece ver
contradição entre seu modelo de maior abertura econômica, maior integração com
os mercados financeiros – e maior repressão política, maior censura da
imprensa, maior controle da internet e maior culto à personalidade. É um modelo
que, em seu todo, parece mais um pesadelo.
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